Quaresma: gestos exteriores, posturas interiores
por Boa SementeLonge de apresentar propostas relativistas ou um relaxamento das exigências da Lei, Jesus vem apresentar o caminho pleno, que inclusive é mais exigente do que a Lei em si. 1 março 2019 Estamos prestes a iniciar o tempo litúrgico da Quaresma. Os dias que a antecedem são oportunos para se perguntar: “como posso fazer desta […]
Longe de apresentar propostas relativistas ou um relaxamento das exigências da Lei, Jesus vem apresentar o caminho pleno, que inclusive é mais exigente do que a Lei em si.
Estamos prestes a iniciar o tempo litúrgico da Quaresma. Os dias que a antecedem são oportunos para se perguntar: “como posso fazer desta Quaresma uma Quaresma diferente? ” Sem dúvidas, a grande tentação que surge nestes momentos é viver os tempos litúrgicos especiais como se não tivessem nada de especial.
Rezando a respeito lembrei de um episódio simples, mas que chamou a minha atenção sobremaneira…
Em certo Centro de Evangelização, enquanto a Missa estava sendo celebrada, uma criança passou diante do presbitério e fez uma respeitosa reverência ao altar. O seu piedoso gesto, que provavelmente aprendera obedientemente dos seus pais, gerou uma reação de ternura nos presentes. Logo após a Missa, os objetos litúrgicos (dentre eles, o altar) foram retirados para dar início a outra atividade. Em determinado momento, a mesma criança que fizera a vênia ao altar durante a Missa, passou novamente diante do palco e, mesmo não tendo altar nenhum, fez a vênia. O gesto despertou uma discreta risada no meio dos presentes.
O que nos diz esse episódio? Aquilo que parecia ser um gesto de piedade não passou de ser o cumprimento de uma regra fortalecido pela eficácia do costume. Provavelmente lhe disseram os pais: “Quando você passar por aqui, precisa fazer uma reverência”, e a criança, obediente, aprendeu aquilo que os pais orientaram. Contudo, sem pretender ignorar a condição da criança, podemos nos perguntar: será que os pais da criança deram para ela pelo menos uma noção básica, sobre o milagre que estava reverenciando, ou simplesmente se preocuparam com ensinar a criança o gesto externo?
Não queremos avaliar a atitude dos pais, pois este texto não é sobre a formação espiritual dos filhos, antes, queremos nos perguntar: será que isso acontece conosco? Será que vivemos práticas espirituais ou atos de piedade pela força do costume ou pelo mero cumprimento de uma regra? Por exemplo, quando fazemos a genuflexão ao entrarmos numa igreja ou capela, lembramos que fazemos isso porque entramos no mesmo espaço que um Rei e queremos render-lhe homenagem?
Quando erguemos os braços ou batemos palmas numa oração comunitária, simplesmente respondemos à sonoridade e ritmo da música ou estamos orando com o nosso corpo? Quando, na fila da comunhão, fazemos uma reverência ou até nos ajoelhamos, o fazemos lembrando que vamos receber o próprio Deus dentro de nós, ou o fazemos porque todo mundo faz? Quando pedimos a bênção dos alimentos, o fazemos para agradecer pela providência de Deus que cuida de nós, ou é meramente uma convenção social que indica o início da refeição?
Gestos exteriores
Todos os momentos da vida espiritual (que é intrinsecamente interior) são marcados por um gesto corporal (intrinsecamente exterior). Podemos dizer que os gestos exteriores têm a sua origem e razão de ser na espiritualidade. Esse princípio e vínculo faz com que cada um destes gestos seja bom por natureza.
Efetivamente, os gestos exteriores fazem parte da composição da prática religiosa. Basta ver a vida de Jesus Cristo, cujas palavras e sinais iam sempre acompanhados por um gesto corporal. Este exemplo foi adotado pela Igreja desde os primeiros séculos até os nossos dias. Na celebração dos Sacramentos, por exemplo, superabundam os gestos corporais que, por sua vez, estão cheios de significado espiritual.
Se os gestos são naturalmente bons, o que há de negativo no exemplo que demos no início?
O gesto sempre deve ir acompanhado do seu significado espiritual, caso contrário, é esvaziado. Todavia, podemos afirmar que o gesto foi feito para permanecer cheio de significado.
Veja bem, a fé cristã – diferentemente do judaísmo e do islamismo – tem como fundamento o “Verbo que se faz carne” (cf. Jo 1,14). Ora, o termo “Verbo”, nos vem do latim “verbum” que, por sua vez, foi a palavra que São Jerônimo escolhera para traduzir o termo grego “logos” e plasmou a edição Vulgata. Porém, “logos” significa muito mais do que simples palavra pronunciada pelos lábios de uma pessoa. Ele indica a “razão do ser”, isto é, o pensamento ou conhecimento (“scientia”) de alguém. Belo é o contraste que o termo grego encontra com o termo hebraico correspondente: “dabar” que indica ao mesmo tempo “palavra” e “ação”.
Jesus Cristo, o logos de Deus que se encarna, é muito mais do que a simples palavra que brota dos lábios de Deus, mas é ao mesmo tempo, pensamento, palavra e ação. Foi por meio deste logos, que tudo foi feito (cf. Jo 1,3), pois, canta o salmista: “foi a palavra do Senhor que fez os céus” (Sal 33,6). Efetivamente, o Senhor cria enchendo com a sua presença, e “a palavra do Senhor corre veloz” (Sal 147,15), é assim que “seu som ressoa e se espalha em toda terra”(Sal 18). Desta ótica, podemos dizer que Jesus é a Palavra (logos) que preenche.
Se o gesto encontra seu princípio no seu significado espiritual, o esvaziamento do gesto torna-se uma espécie de anulação da “razão de ser” do gesto, ou do logos do gesto.
Contudo, o verdadeiro logos de toda vivência espiritual cristã, é o Cristo, o logos de Deus. Consequentemente, a negação do logos da espiritualidade é uma negação do próprio Cristo.
Em palavras mais simples, se Jesus é a Palavra que preenche, o esvaziamento do gesto pode ser compreendido como uma negação do mesmo. De forma ainda mais grave, podemos dizer que um gesto vazio significa uma não-encarnação do mistério, como uma verdadeira negação ou rejeição do “logos que se fez carne”.
Posturas interiores
Qual seria um bom exemplo de um esvaziamento do gesto? Os fariseus.
Os fariseus eram uma seita judaica nos tempos de Jesus, assim como os saduceus, essênios e zelotas, porém, que mereceram a repreensão de Jesus de forma particular pela sua arrogância e falta de conversão interior. Jesus chamava-os constantemente “hipócritas”, ainda exorta-os citando as Sagradas Escrituras quando diz: “Bem profetizou Isaías a respeito de vós: este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; em vão me prestam culto” (Mc 7,6-7).
Com a mesma firmeza advertia seus discípulos: “Cuidado! Guardai-vos do fermento dos fariseus” (Mc 8,15). Os fariseus costumavam cumprir as leis ao pé da letra e ensiná-las de forma rigorosa.
É necessário ressaltar que para os judeus dos tempos bíblicos (inclusive para Jesus), a Lei não é tida como algo ruim, antes é vista como algo muito positivo e encontra-se no centro do judaísmo. O salmista canta com júbilo: “a lei do Senhor é perfeita” (Sl 19(18), 8), e ainda: “eis que venho fazer com prazer a vossa vontade, Senhor” (Sl 39).
Para o povo de então, o cumprimento da Lei não é uma imposição nem opressão, ao contrário, é a forma mais excelente de amar a Deus. Pelo mesmo, Jesus nunca repreendeu os fariseus pelas suas práticas, antes os repreendeu porque estas estavam esvaziadas de sentido. Os gestos externos como o dízimo, jejuns e orações, não eram acompanhados da postura interior sincera, antes procuravam vanglória e privilégios.
Ora, nos profetas, começa a se compreender que a ação de Deus não é meramente exterior e que não se expressa somente em terras e vitórias militares. Deus manifesta o desejo da mesma resposta do seu povo nas práticas: “Amor eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6, 6).
Este movimento de interiorização da Lei não anula as práticas externas, mas as solidifica numa base profunda e sincera por parte do povo.
Em Jeremias, Ezequiel e Oseias, o conhecimento de Deus é apresentado como a via para Deus e como meta a aspirar por todos: “todos me conhecerão, dos menores aos maiores” (Jr 31,34). Consecutivamente o conhecimento de Deus e do seu amor deve levar o povo à conversão do coração. Desta forma, o cumprimento das normas surge como uma consequência da mudança interior: “Porei no seu íntimo um espírito novo: removerei do seu corpo o coração de pedra e lhes darei um coração de carne, a fim de que andem de acordo com os meus estatutos e guardem minhas normas e as cumpram” (Ez 11,19-20).
A grande novidade trazida por Cristo é a perfeição da Lei, um dos temas mais polêmicos na sua pregação. O Senhor deixa claro: “não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Nesse ‘dar pleno cumprimento’ esconde-se aquilo que é possivelmente a mensagem central de Jesus: o amor.
Cristo não muda nada da Lei, de fato Ele reafirma: “não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (Mt 5,18) mas Ele vem apresentar o amor como a perfeição da vivência desta Lei, pois “o amor é a plenitude da Lei” (Rm 13,10). Longe de apresentar propostas relativistas ou um relaxamento das exigências da Lei, Jesus vem apresentar o caminho pleno, que inclusive é mais exigente do que a Lei em si.
Em Mateus, no capítulo 5 do versículo 20 ao 48, temos uma série de ressalvas por parte de Jesus sobre a vivência da Lei, com a conhecida fórmula: ‘ouvistes que foi dito… eu porém vos digo…’ Desce aqui Jesus em várias das Leis estabelecidas por Moisés e nos convida a viver acima desta Lei. Veremos que a Lei de Jesus é muito mais exigente do que a Lei de Moisés.
Compreendemos que esta ‘nova Lei’ vivida no amor corresponde ao tempo da graça, ao dia do Senhor. Jesus, falando sobre o divórcio, lembra que Moisés deu cabimento a algumas atitudes pela dureza do coração do homem, mas que no princípio não era assim.
Com a expressão ‘no princípio’ não se refere a alguma lembrança histórica, mas se refere ao Gênesis e à Lei natural de Deus, a condição do homem antes do pecado. Cristo mostra que há normas que Deus permitiu o homem viver, mas que já é chegado o tempo de viver mais alto, a perfeição no amor, através do Cristo que é a abolição do pecado.
O Amor não apaga a Lei, nem poupa de nenhuma das suas exigências, ao contrário, ele pede mais. É preciso primeiro viver a Lei para poder viver o amor. Segundo Jesus, o amor está acima da Lei. A Lei torna-se assim, em Cristo, uma base para o amor. O amor é a perfeição da Lei, então, como poderei viver o amor se não consigo viver em primeiro lugar a Lei? O convite de Jesus é exigente e radical.
Cristo mostra o amor real ofertando a sua vida na Cruz, e chama a vivê-lo, comunicando-o em forma de mandamento: “dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34). Neste contexto da ‘nova lei’, Jesus não só se coloca ao nível de Moisés que é profeta (que fala em nome de Deus), mas se coloca ao nível do autor da Lei, o próprio Deus.
Há fariseus que fizeram a sua experiência com Cristo, dentre os quais destaca Nicodemos, porém, provavelmente o testemunho mais marcante talvez seja de São Paulo, que de fariseu, defensor rigoroso da Lei (a ponto de condizer com a morte de Estevão), passou a ser o Apóstolo do Amor, aquele que proclamou: “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1Cor 6,12).
Esta frase, central na teologia moral paulina, indica que existindo ou não uma lei que exerça autoridade sobre o indivíduo, é necessária a adesão pessoal ao plano de Deus e evitar aquilo que não convenha para se tornar um novo homem em Cristo.
Talvez esta possa ser a Quaresma da união entre gestos exteriores e posturas interiores. Não é bom que deixemos as práticas exteriores, mas que as preenchamos com espiritualidade e orações agradáveis a Deus.
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